17 junho 2009 

Espero que chova no meu funeral.

Espero que chova no meu funeral. A chuva ajuda lágrimas a sair e disfarça os rostos secos. Detesto funerais sem chuva, não parecem legítimos. Nada mais triste para um morto que ser enterrado em um dia ensolarado, podiam muito bem enterrar um caixão vazio que não haveria diferença. Não que eu queira que todos derramem rios quando eu morrer, ou anseie pelo dia fatídico, longe disso. É simplesmente que fui a alguns enterros na minha vida e bem, em dias ensolarados, não é a mesma coisa. É como se faltasse algo. Como se faltasse um morto. Sinto que quando é em um dia chuvoso é mais fácil por tudo pra fora e depois superar a perda. Se não, sei lá, todos os outros dias é como se o morto nunca tivesse morrido. A mente apaga, esquece, lembra somente quando lhe convém, quando se quer abraçar o defunto, dizer-lhe algo, fica aquela coisa: ah é, não está mais aqui. Todos os sentimentos continuam voltando de tempos em tempos, todas as sensações ruins de perder alguém, toda a angústia de não poder falar todas as coisas que sempre, sempre, ficam não-ditas. Tem tantas frases não-ditas que seriam tão lindas se fossem simplesmente ditas. Aquele buraco que nunca se sabe do que é até lembrar que tinha alguém preenchendo ele antes.

Queria ter te perdido num dia chuvoso.

06 abril 2009 

Sapatos Azuis

- Cara, eu to coberto de sangue. Vem pra cá agora.

***

Eu estava voltado pra casa, andando na rua a cerca de umas sete quadras do meu apartamento quando o vi. Uma rua escura, com postes de luz afastados e não mais do que um por par de quadras, quase uma da manhã quando ele vinha na direção oposta. Eu tinha acabado de pegar a última sessão de cinema com a minha mãe e deixado ela no ponto de táxi. Nós vimos um filme qualquer sobre um drama idiota, nada de muito interessante e, diferente do habitual, eu e ela não havíamos brigado naquela noite. Ele tinha pele clara, mas mal se notava com toda a sujeira dele e a falta de iluminação. Caminhava com um jeito estranho, como se manco ou algo parecido. Provavelmente era só um mendigo maltrapilho que iria me pedir uns trocados para um trago, pensei. Não costumo negar trocados para outros beberem, sempre penso que um dia posso precisar que façam o mesmo por mim. Somente quando nos aproximamos que vi melhor sua silhueta, e que não caminhava daquele jeito por ser manco, parecia ter algo grande no bolso. Mau sinal, pensei. Ao acabar meu pensamento, ele já estava quase em cima de mim, tirando uma enorme faca de cortar carne da calça de abrigo.

Não sei ao certo como ou mesmo porque fiz o que fiz em seguida, mas de alguma maneira consegui segurar sua mão antes que me ameaçasse e dar-lhe um soco no queixo que o derrubou. No tombo, perdeu a faca e ficou atordoado, embora eu só fosse perceber isso depois. Em vez de correr para longe eu pulei em cima dele e comecei a bater na sua cara como um louco. Ele possivelmente já estava desmaiado após o sétimo ou nono soco, mas eu não parei. Continuei socando seu rosto como se não houvesse amanhã até estar com os punhos todos vermelhos e ter exaurido toda a força de meus braços. Usei os cotovelos por um tempo mais e então, sem o menor sinal de razão, peguei a faca que estava ao alcance de um braço e cravei-a no meio de seu abdômen até sua ponta chegar ao chão. Eu levantei e ele estava estirado no chão entre a rua e a calçada, com a cabeça encostada no paralelepípedo. Não tive dúvidas e sem um pingo de remorso, chutei sua cara distorcida contra o cordão da calçada. Devo ter feito isso por uns dois minutos seguidos, apesar de não ter muita noção de quanto tempo se passou no ocorrido. Certamente parecia não acabar nunca. Não parei nem mesmo quando ouvi o “cleck” dos ossos quebrando. Quando finalmente cansei, tirei meu pé de onde outrora houvera um rosto humano. Agora, havia apenas um crânio partido e sangue por todos os lados, com pequenas partes de carne espalhadas, e algo que a meia luz não dava pra saber direito o que era, se um olho ou um pouco de cérebro. O impacto com o cordão da calçada tinha quebrado a parte de traz de sua cabeça, e a mandíbula se encontrava a uns dois metros dali. Eu olhei aquilo com as mãos na cabeça, sem compreender uma vírgula do que havia acontecido.

Sem pensar, decidi sair dali. Estava a algumas quadras da minha casa, poderia ir pra lá e tudo ficaria bem. Com as mãos tremendo tirei um cigarro de um maço esmagado em meu bolso. Somente quando o levei ao rosto para acendê-lo que vi minhas mãos nas chamas do isqueiro que percebi o meu estado. Minhas mãos estavam mais ensopadas que as luvas de um açougueiro. Meus sapatos estavam cobertos por uma nova cor cobrindo o azul e branco original, e o que eu achava ser suor no meu rosto tinha uma consistência diferente. Tentei limpar o rosto com a camiseta branca que eu estava usando, somente para descobri-la encharcada de um vermelho escuro e ferroso. Eu estava coberto de sangue.

Perplexo diante do meu estado, fumei meu cigarro escondido em um canto com medo de que me achassem. Estava com sorte, se é que se pode dizer uma coisa dessas, de ninguém ter passado por ali. Decidi que voltaria para a casa do mesmo jeito, evitando as ruas de maior movimento e de policiamento óbvio. Tentei sem muito sucesso limpar o sangue do rosto e segui em frente, ficando sempre na calçada mais escura. Não demorou muito eu tive que cruzar uma esquina atulhada de pessoas bebendo ao redor de um bar. Por sorte eram todos jovens muito focados em suas cervejas e baseados, ocupados demais para me notarem passando do outro lado da rua. Não fosse o barulho que eles faziam, poderia acordar os moradores das casas próximas com as batidas exageradas de meu peito nervoso enquanto esperava por um grito de denúncia. Mais três quadras caminhei por entre ruas mais escuras, fazendo um caminho maior do que o normal para evitar qualquer avenida. Somente uma mulher me viu nesse caminho e, horrorizada, correu para o outro lado da rua com a bolsa e o coração nas mãos. Eu estava fadado a ser visto, porém, à medida que me aproximava da movimentada rua cheia de bares onde morava.

Quando cheguei à esquina de minha quadra vi alguns rostos incrédulos dos poucos passantes, graças à maldita rua iluminada, e soube que não podia ficar ali por muito tempo mais antes que alguém chamasse a polícia. Caminhei rápido tentando não correr ou chamar a atenção, mas não pude deixar de notar as conversas parando e os olhares voltando-se para mim à medida que me aproximava do meu prédio. Tive que caminhar por meia quadra, e foi a pior meia quadra de minha vida. Com as mãos trêmulas eu falhava ao tentar botar a chave na maldita fechadura do portão, sempre com a sensação de que a qualquer momento alguém me algemaria e me levaria para a delegacia. Quando finalmente entrei no prédio foi como se tivesse tido um breve orgasmo de satisfação. Não durou muito, porém, já que enquanto eu subia o primeiro lance de escadas eu ouvi vozes e passos vindo dos andares mais de cima. Corri para que conseguisse chegar ao apartamento antes de cruzar com alguém no corredor, subi o segundo lance de escadas a três degraus por vez para chegar ao meu andar. A maldita fechadura emperrada não abria normalmente sem muito jeito, e com o desespero que me tomava conta não havia jeito de abrir à medida que o som dos vizinhos descendo as escadas e conversando se aproximavam cada vez mais de meu andar. Quando estava quase no ponto de arrombar minha porta consegui, por fim, abri-la, e mal tive tempo de ver as sombras deles chegando no momento em que fechava a porta com um sonoro estrondo. Somente então, em casa, com a luz acesa, em frente ao espelho da sala, pude ver meu verdadeiro estado. Não era nada bonito.

Eu havia limpado um pouco o sangue da cara embora ela ainda estivesse meio manchada. A camiseta impecavelmente branca estava tão suja que quem olhasse pensaria que eu que havia levado uma facada no abdômen. No pescoço e nos braços o sangue ainda estava meio pastoso, e havia até mesmo um pouco coagulado em partes de minha barba. A calça era certamente escura e ajudava a esconder um pouco na noite, mas à luz plena percebia-se perfeitamente que ele era mais escuro. Os sapatos, principalmente o direito, não tinham quase nenhum resquício de azul ou branco em suas superfícies. Eu então chorei. Depois, ri por uns minutos e chorei um pouco mais, em choque.

Não tenho certeza que tanto medo eu tinha de ser pego. Eu não iria passar muito tempo na cadeia com um bom advogado, já que o ato poderia ser considerado em legítima defesa, mas devido às circunstâncias do ocorrido e do estado do falecido, provavelmente me colocariam em alguma instituição de acompanhamento psicológico por um bom tempo até terem certeza que eu poderia conviver em sociedade. Obviamente, não pensei em nada disso no momento. A única coisa que pensei após o surto de risos e choros, foi na maldita faca.

Aquela faca tinha minhas digitais, e provavelmente o corpo também. Eu comecei a entrar em pânico pensando em ir para de trás das grades, e definitivamente tinha que voltar lá. Não no estado em que estava, e provavelmente não sozinho. Tinha que ter alguém caso já estivessem em volta do corpo, para que eu pudesse ter uma desculpa de estar lá, e quem sabe um álibi para o ocorrido. Ainda tremendo alcancei o telefone celular para ligar para um de meus melhores amigos que morava não muito longe dali, e tinha um carro. Tive que discar e apagar o número três vezes até conseguir acertar, visto que não tinha a menor condição de procurar algo na agenda do telefone. Chamou até cair na primeira vez. Na segunda, ele atendeu.

***

-Alô, Fred? Sim, eu sei que é tarde. É, tu trabalha amanhã, eu sei. Mas cara, tu ainda tem aquela chave do meu ap? Não pergunta porra, tem ou não? Ta, vem pra cá, te explico quando tu chegar caralho, não posso abrir a porta do prédio. Cara, eu to coberto de sangue. Vem pra cá agora.

18 dezembro 2008 

Dia de Jogo.

Eles eram colegas de trabalho, nada demais. Ele estava trabalhando lá há uns três meses quando ela entrou. Ela nunca havia trabalhado em um restaurante antes, e tinha tido poucos empregos antes deste. A mando do gerente, ele começou a ajudá-la visto que ela era um tanto atrapalhada. Ele lhe deu dicas e a treinou bem, e em pouco tempo ela se tornou uma boa atendente. Trabalhavam à noite. O restaurante abria às seis horas, mas tinham que chegar as cinco para deixar tudo organizado. Fechavam à meia-noite, exceto nas sextas e sábados em que ficavam até mais tarde.

Davam-se bem os dois. Apesar de não serem muito chegados no início, batiam um papinho aqui e ali. Tinham interesses semelhantes e algumas idéias parecidas, como todo mundo. Gostavam de filmes, de dançar, de sorvete, de lasanha, de música, essas coisas que quase todo mundo gosta. Ele tinha uma quedinha por ela, embora ele próprio ainda não soubesse disso. Em pouco tempo, começaram a se conhecer melhor. Nada muito intimo ou sério, coisas como a quantidade de universos existentes, o que estariam fazendo em cinco anos, opiniões sobre política, estilos de artesanato, times de futebol, parentes distantes e várias coisas mais abstratas. Estava tudo indo muito bem, até aquele dia.

Era uma quinta-feira. Chovia. Não era nenhum dilúvio, mas também não uma chuva de molhar bobo qualquer. Chovia o suficiente para espantar os clientes e deixar o lugar jogado as moscas. Para piorar ainda mais a situação, era dia de jogo. Quase todos os clientes do lugar tinham tevê a cabo, e os poucos não gostavam de futebol, não gostavam muito de chuva. Os únicos lugares com clientes eram botecos com tevê a cabo, que não conseguiam fechar devido ao grande número de torcedores das classes mais baixas comemorando ou lastimando o resultado do jogo. Às dez horas, o gerente dispensou a maior parte do pessoal. As onze foi a vez do gerente e de mais alguns irem embora, deixando apenas ela para fechar o caixa, ele para supervisioná-la e ajudar no fechamento do resto da loja, e uma pessoa na cozinha caso algum lunático aparecesse querendo comer algo até a meia noite. Ninguém apareceu e o cozinheiro foi embora quinze minutos antes para pegar o ônibus mais cedo. Os dois ficaram fechando a loja, e ela se demorou atrapalhou um pouco na contagem do caixa. Era a primeira vez que fechavam a loja juntos, só os dois. Era diferente.

Ele se trocou e esperou por ela para levá-la até a parada. Como nenhum dos dois havia levado guarda-chuva, caminhavam apertados nas pequenas marquises. A parada dela ficava a quatro quadras dali, e a dele duas quadras depois da dela. Antes do fim da primeira quadra tinham desistido das marquises e andavam normalmente pelo meio das calçadas, cabelos molhados no rosto e roupas encharcadas. Começaram a conversar e se distraíram, não notando o ônibus dela chegar até ser tarde demais, eles ainda a uma quadra e meia da parada. Ela praguejou, suspirou e riu, tendo perdido o último ônibus da sua linha. Agora teria que pegar um táxi. Ele disse que rachava o táxi com ela, que era caminho (mesmo não sendo). Ela concordou e foram caminhando até um ponto de táxi algumas quadras dali.

Obviamente, não havia táxis no ponto naquele exato momento. Decidiam esperar em um barzinho na mesma quadra, que não conseguia fechar por causa dos torcedores embriagados comemorando a vitória do time. Eles sentaram em uma mesa que poderiam cuidar o ponto pela janela, pediram uma cerveja e se puseram a botar papo fora para passar o tempo. Na terceira cerveja, por volta das duas da manhã, falavam sobre as preferências dos homens nas mulheres e o padrão de beleza atual. Conversa de bar. Ela diz convicta que, para todos os efeitos, ela não era uma mulher bonita. Ele a olha.

Seus seios soltos, sem sutiã embaixo do moletom azul molhado pela chuva. Cabelos negros ondulados pingando água em sues ombros, os olhos castanhos fitando-o e a calça delineando suas coxas voluptuosas. Um sorriso em seus lábios rosados levemente rachados do frio. Ele responde.

-Eu te acho linda. Linda e sexy. Tu é a mulher mais sexy que eu conheço, e um dia ainda vou te levar pra cama.

Ela ficou atordoada, silenciosamente chocada. Um turbilhão de pensamentos tomou conta da cabeça dela, em um espaço de tempo não maior que um instante.

"O que ele quer dizer com isso? Como ele me fala uma coisa dessas assim, na cara, sem nem ficar vermelho! Aimeudeusaimeudeuselegostademim! Será? Só quer transar e depois ir embora, com certeza. Mas ele trabalha comigo! Ele até que é bem bonito, e tem umas mãos tão firmes. Essa foi a coisa mais bonita que já me disseram em toda minha vida. Que atrevimento! Um dia, vou levar ele pra cama."

O instante passou e ele estava ali, na sua frente, sorrindo, a sua mão em cima da dela, a outra no copo de cerveja. Estava verdadeiramente ali. Ela sentiu um desejo, um impulso, uma vontade incontrolável, maior que ela, maior que tudo que ela experimentara antes, maior que o universo. Agarrou a nuca com poucos cabelos molhados, puxou-o para perto de si e beijou-lhe com toda paixão e desejo que sentia.

Pediram a conta.

28 maio 2007 

Ventilador

I.
Ela dormia tranqüila. Ele olhava fixamente o teto e o movimento rápido do ventilador. Ele estava cansado, mas não conseguia dormir, nunca conseguia. Tirou a mão dela pousada sobre seu peito com cuidado para não acordá-la com o movimento. Não queria que ela acordasse, ela estava dormindo um sono tão profundo, tão bonito. Passou por cima do corpo dela com a mesma cautela com que havia afastado o braço e, quando ela pareceu sentir o movimento, deu-lhe um beijo na testa e disse-lhe para que dormisse, que ele já voltava.

A televisão sem som passava um drama antigo, daqueles filmes bons que emocionam um homem durão e fazem alguém mais delicado verter lágrimas. Ele sorriu para uma cena familiar (havia visto esse filme mais de cinco vezes) e saiu do quarto a passos silenciosos. Lavou o rosto no banheiro, molhando-o por três vezes antes de começar a ensaboar. Estava com calor, tirou a camiseta branca sem estampa que usava para dormir ou sair nos feriados. Não era feriado. No espelho, as marcas no pescoço e nas costas e as olheiras em seu rosto denunciavam os feitos da noite passada, bem como o cansaço pela noite não dormida. Secou o rosto na toalha, e tornou a molhá-lo convencido de que estava muito quente àquela noite. Saiu do banheiro.

Foi em direção à sacada do apartamento, deixando a camiseta no caminho em um canto do quarto dela junto com suas cosias, aproveitando para pegar o isqueiro e os cigarros. Abriu a porta da sacada com todo o cuidado e passou por uma fresta pequena, fechando-a atrás de si. Apoiou-se no parapeito com as duas mãos à distância de um braço uma da outra, como sempre fazia em sacadas. Olhou para o céu sem nuvens e torceu para que as nuvens chegassem, para que chovesse no dia seguinte. Acendeu um cigarro e pôs-se a pensar sobre todas aquelas coisas irrelevantes que todas as pessoas pensam quando estão sozinhas. O cotidiano, o futuro, o que ele iria fazer amanhã, como se manteria no emprego, se iria embora antes do meio dia para almoçar em casa, se sua irmã estava se alimentando direito, se as ruas não estavam muito perigosas para uma menina de sete anos brincar até as oito da noite, se esse calor não vai passar e onde ele pretendia estar daqui a dez anos. Todas aquelas coisas irrelevantes que todas as pessoas pensam quando estão sozinhas. Acabou o cigarro. Ele resolveu checar ela, ver se estava tudo bem.

Ela dormia ainda, num sono um pouco mais agitado, em uma outra posição, bem diferente da primeira. Dormia de bruços, uma das pernas encolhida, a outra totalmente esticada. A mão perto do próprio peito, como que protegendo algo, a outra embaixo do travesseiro. Um rosto levemente espantando e suado em meio a um sono agitado. Ele deu-lhe um beijo e segurou um pouco sua mão. Ela se acalmou um pouco e nos seus lábios se formou um pequeno sorriso, ela não respirava mais ofegante. O apartamento todo silencioso, a luz da televisão e a do banheiro sendo as únicas acesas, ouvia-se às vezes o som dos gatos da vizinha miando por comida, ou o barulho das patas deles no assoalho de madeira, quando pulavam. Ele deitou-se ao lado dela e deixou que o braço dela pousasse novamente em seu peito. Apoiou a cabeça em sua própria mão, olhando para o teto. O ventilador ainda girava. Ela dormia tranqüila.


II.
Ela acordou suada. Despertara de susto, olhando de perto o rosto dele. Mudo, de boca aberta, voltado para cima, com o braço dobrado um pouco ao lado da cabeça. Fazia muito calor àquela noite, e o contato do corpo dele no dela fazia ambos transpirarem mais. Ele dormia pesado. Ela respirou aliviada por ele estar dormindo. Ele quase nunca conseguia dormir direito, não queria acordá-lo justo no sono mais profundo. Levantou o torso com cuidado, embora não o suficiente para que os cabelos não roçassem na barriga dele, que instintivamente se encolheu com as cócegas. Ela havia dormido do lado de fora da cama, mas estavam com as posições trocadas, e o lado dela agora dava de frente para a parede. Por sorte, ele não acordou, nem com as cócegas nem quando ela passou por cima dele para sair da cama. Espreguiçou-se em silêncio, abrindo os braços para o ventilador veloz e deixando que o suor da sua nuca e entre seus seios nus secasse lentamente com o vento. Teve sede.

Caminhou até a cozinha na ponta dos pés, não pelo barulho, mas por puro hábito de usar salto. Não se preocupou em acender a luz e abriu logo a geladeira e o congelador. Respirou o ar frio por um instante enquanto ele saia do eletrodoméstico para envolvê-la em seus braços incorpóreos. Agarrou um copo do secador de louças e serviu-se de água gelada. Arrancou em seguida os gelos da forma, sempre três, sempre depois do líquido já servido. Gostava de colocá-los um por vez no copo cheio e vê-lo quase transbordar. Bebeu aquela água como se fosse a mais deliciosa das bebidas, e realmente o era em seus lábios sedentos de sede. Fechou a geladeira e o congelador ao mesmo tempo, acabando com a suave brisa que havia livrado momentaneamente ela do calor. Olhou a cozinha.

Na pia ainda jazia um resto de louça suja da janta dos dois, mas ela não tinha vontade ou disposição para tratar disso agora. No cesto de frutas somente uma maçã provavelmente não muito boa, mas era sexta-feira e no sábado compraria muitos limões para a caipirinha, poderia comprar umas maçãs também e quem sabe um mamão. No fogão a chaleira onde aqueceria a água para o café quando amanhecesse, pois ele gostava de café passado na hora. Sobre o balcão onde largava as chaves, metade de uma barra de chocolate a olhava maliciosamente. Ela ficou em dúvida por um instante. Lembrou-se dos elogios do homem que agora dormia em sua cama fizera ao seu corpo na noite passada e decidiu que podia se dar ao luxo de comer um bom chocolate. Devorou-o por inteiro, vertendo mais dois copos de água com gelo e lambuzando os lábios no processo.

Foi até a pia e se lavou apenas com água, secando as mãos no corpo para se refrescar. Pensou por um instante se não deveria ter guardado um pedaço de chocolate para ele, mas era a casa dela e ele não gostava muito de chocolate, não se importaria. Pensou em ligar o som por um instante, num volume baixo, na sala de estar, mas mesmo assim acabaria por acordá-lo e desistiu da idéia. Caminhou um pouco sem pensar e da sala foi para a sacada. A brisa que passou foi deliciosa naquela noite quente. Ele havia deixado o cigarro no parapeito da janela, bem como seu isqueiro favorito, o prateado. Ela fumou com sua calma natural, distraindo-se com os poucos carros que passavam pela rua àquela hora. Não queria mais nada.


III.
Acordou deitado de bruços, babando no travesseiro. O braço, ainda dolorido devido ao peso do corpo sobre ele, certificava-se de que não havia ninguém ao lado na cama. Virou-se para cima e ficou a contemplar o giro veloz da hélice do ventilador de teto no escuro-claro do quarto. Levantou-se com o relógio marcando quatro e quinze da madrugada, embora os relógios dela estivessem sempre adiantados oito minutos, e ele soubesse que na realidade ainda eram quatro e sete.

Foi ainda nu até o banheiro. Lavou o rosto e o pescoço, numa tentativa infrutífera de se livrar do calor. Olhou fundo nos olhos cansados de seu rosto que apareciam espelho. Precisava dormir mais, essa insônia estava lhe matando. Entre o fechar da torneira e o abrir da porta do banheiro, ouve o bater das patas de unhas não cortadas de um gato contra o chão no apartamento ao lado. Segue o cheiro de fumaça amarga até a sacada da sala, de vista para a rua. Ela estava ali, o tempo todo. Os pés descalços na laje fria, os braços apoiados no parapeito da sacada, a calcinha preta aumentando a sensualidade das curvas voluptuosas de seu corpo iluminado de leve por um dos postes da rua, o cigarro na ponta dos dedos e a fumaça saindo de sua boca e sendo carregada por uma leve brisa noturna. As mais belas costas nuas que ele já havia visto. Abstraída da realidade em seu cigarro e nas luzes brilhantes da madrugada, não o notou se aproximando até que chegasse bem perto. Beijou sua nuca, eriçando os poucos pelos que ela tinha. Ela acabou o cigarro, inclinou a cabeça para trás e lhe beijou a face. A mão esquerda dele cobriu o seio excitado dela, massageando seu mamilo. A direita desceu pela barriga e entrou dentro da calcinha para penetrar o sexo dela. Transaram ali mesmo. Não importava se seriam flagrados, presos ou se os filmariam e colocariam na Internet. Não importava que estivesse quente, que estivessem cansados ou que pela manhã ela iria à feira e ele talvez não almoçasse com ela. Não importava o futuro deles, juntos ou não, ou o passado que tiveram. Não importavam as estrelas da noite, os carros velozes ou os gatos da vizinha. Nada importava, nem mesmo eles importavam mais. Só importava a vontade. Só importava o agora.

05 março 2007 

Cinza

Chegou em casa cansado. Molhado, derrotado, falido, desesperado. Cambaleou porta adentro, embriagado. Abriu a geladeira, nada para comer, duas cervejas e um vinho avinagrado. Pegou uma cerveja, abriu-a, tomou um gole. Sentiu enjôo, já havia bebido essa noite, alguma outra coisa, provavelmente whisky, sempre levava o junto de si um pouco, principalmente no inverno. Era inverno. A cerveja lhe fazia mal, tomou metade em largos goles e sentiu vontade de vomitar. Entrou no quarto escuro, foi até o banheiro, abriu a tampa do vaso e mijou. Detestava o ato de mijar, sempre tão urgente, tão incômodo, tão vulgar. Acendeu a luz do banheiro e viu que não errara a pontaria, pelo menos dessa vez. Olhou sua cara no espelho, meio torta, cansada, perdeu-se em reflexões sem importância. Tirou a carteira de cigarros do bolso, pegou um com a boca enquanto procurava o isqueiro entre os bolsos, achou, no bolso de trás da calça, sempre colocava no da frente, havia se enganado na última vez. Acendeu o cigarro, deu um tragada longa, longa demais, olhou para cima, soltou a fumaça, sentiu calor. Tirou a camisa molhada da chuva, tonteou, caiu no chão do banheiro, o cigarro aceso entre os dedos. Como diabos eu cai?, pensou. Deu outra tragada, soltou a fumaça para cima, olhou para o lado enquanto soltava o final da fumaça. Perto do vaso sanitário, uma barata.

Levantou no susto, a barata correu também no susto. Ele a esmagou com a sola do sapato preto ainda molhado, ainda meio tonto. Nojo. Nojo de baratas, sempre teve, nunca ia deixar de ter. Sentou no vaso com a tampa abaixada, deu outra tragada. Pegou o papel higiênico, limpou os restos mortais do monstro de seu sapato, soltou a fumaça, limpou o chão com outro pedaço, jogou ambos no lixo. Levantou-se, lavou o rosto com a mão direita, segurava o cigarro com a outra, era canhoto. Molhou todo o chão do banheiro. Tirou os sapatos e as calças, jogando-os no quarto escuro. Molhou-se mais uma vez, estava molhado da chuva, sentia muito calor. Foi para o quarto.

Tropeçou nos sapatos ao tentar achar o interruptor, achou-o, o quarto já não era mais escuro. Uma cadeira e uma mesa com papéis e a velha máquina de escrever num canto, coberta de pó, será que ainda funcionava?, pensou. Provavelmente não, não escrevia nada há anos, perdera os sonhos juvenis de ter algum futuro literário. Uma cômoda com quatro gavetas e um rádio antigo AM/FM em cima. Um cabideiro onde pendurava em cabides algumas poucas camisas (sempre gostou mais de camisetas, lhe davam um ar mais jovem) e um colchão de casal estendido no chão. Esse era o quarto. Acabou o cigarro de pé ao lado do interruptor, jogou o toco num canto cheio de tocos, o qual ele juntava uma vez por mês ou algo assim. Deitou-se na cama de lençóis desarrumados trajando apenas a roupa de baixo. Sentiu-se tonto de novo, enjoado, e com sede. Lembrou da cerveja esquecida na cozinha, levantou-se e quase caiu de novo, mas conseguiu manter-se de pé e foi pegar a cerveja. Tomou um gole, ainda tonto, ainda com sede, mais enjoado. Acabou a cerveja e sentiu vontade de vomitar de novo. Tornou ao banheiro.

Lavou a cara mais uma vez. Estava muito calor aquela noite. Não queria vomitar, sentia nojo, sua barriga doía muito com as contrações, o gosto era horrível. Pôs o dedo na boca e forçou o vômito. Treze minutos vomitando. Detestava aquilo, não queria vomitar. Nojo, barriga doendo, gosto ruim. Lavou-se e deu a descarga, lavou-se novamente. Foi até as calças e pegou mais um cigarro. Acendeu, deitou na cama revirada de lençóis suados, fumou até o fim deixando as cinzas caírem no chão. Adormeceu.

23 fevereiro 2007 

Libertação

“trim trim.”

Ele despertou devagar. Na cabeça ecoava o som estridente. Virou-a lentamente, tudo girava graças ao porre da última noite. Olhou para o relógio.
“trim trim.”

Dez horas da manhã. Sábado. Ninguém deveria acordar antes do meio-dia no sábado. Deveria ser proibido. Toque de recolher às oito da manhã e lei de silêncio até o meio dia. Todos os aparelhos barulhentos, carros, relógios, pessoas, todos desligados.
“trim trim.”

Especialmente telefones. Que tipo de imbecil telefonava para alguém sábado as dez da matina? Que tipo de imbecil telefonava para ele a essa hora? Sentou-se na cama.
“trim trim.”

O sol entrava pela janela direto no sou rosto. Sol filho da puta, ele resmungou. Pôs seus chinelos. Coçou o saco. Acostumou os olhos apertados.
“trim trim.”

Nunca lembrava de desligar a droga do telefone antes de sair, tampouco quando chegava bêbado. Pensou em colar bilhetes para ele próprio, pois vivia esquecendo das coisas, mas, apesar de ter comprado papeizinhos auto-adesivos para os ditos, nunca lembrava de escrever um só que fosse.
“trim trim.”

O barulho já estava lhe fazendo a cabeça rodar. O barulho e a ressaca. Atendeu e disse:


-Espere.


Levantou-se. Alguém falava algo do outro lado, mas o braço com o telefone pendia ao lado do corpo, longe demais para que ele escutasse qualquer coisa. Foi até o banheiro, largou o telefone sobre a pia e a pessoa do outro lado ouviu um forte estrondo. Ele levantou a tampa do vaso com a calma e a graça de um gato gordo, botou seu pau para fora e começou a mijar. Deve ter mijado um litro antes de finalmente dar a descarga e lavar as mãos. Secou-as.

Pegou um cigarro do maço do banheiro. Tinha um ou mais maços espalhados pelas peças do apartamento. Isso evitava que tivesse que sair da privada ou de perto do fogão ou mesmo levantar da cama quando queria fumar. O mesmo valia para fósforos. Detestava isqueiros.
Riscou um fósforo e acendeu o cigarro. Deu uma longa tragada, daquelas de comerciais de TV, e soltou calmamente a fumaça. Pegou o telefone.


-Fale.
-Alô, Moacir? Porra, você me deixou esperando meia hora nessa merda de telefone!
-São dez e treze. O telefone tocou as dez em ponto, eu atendi as dez e quatro, então você está esperando faz míseros nove minutos. Porque me acordou seu bosta? Sabe que não levanto antes do meio-dia aos sábados. Normalmente só depois das duas.
-Preciso de um favor seu, cara.
-E o que diabos não pode esperar até as duas da tarde e tem que me acordar a essa hora, Cláudio?
-Você precisa vir pra cá, cara.
-Vai à merda.
-Sério cara, tou encrencado, preciso da tua ajuda.
-Porra, ta, em uma hora tou ai.
-Uma hora!? Não da pra chegar antes? É perto!
-Não fode. Uma hora. Vou me apressar, mas antes disso não chego.
-Tá legal, tou te esperando.


Moacir desligou. Atirou o telefone na cama. Olhou-se no espelho e espremeu uma espinha a direita do queixo enquanto segurava o cigarro nos lábios. Foi até a cozinha e bebeu um copo d’água. Abriu a geladeira, queria fazer uma omelete. Estava sem ovos. Comeu um sanduíche. Ele fazia vários de uma vez e os deixava prontos na geladeira, em uma bandeja. Fazia dois pacotes de pão por vez. Usava para fazer torradas ou comia-os assim, com presunto e queijo. Ainda tinha sete da última remessa.

Foi até a sala, parou em frente ao aparelho de som. Antigo, havia herdado de seu pai, Ernesto, tocava vinil e fita cassete apenas. Tinha quatro caixas de som grandes e potentes, uma em cada canto da sala. Alguns vizinhos o detestavam por isso. Mas fora a música alta ele era um rapaz simpático. Além de que, nunca ligava o rádio alto antes das dez da manhã, pois estava dormindo, nem depois das dez da noite, pois normalmente estava na rua. Havia acoplado um pequeno aparelho ao som, para tocar os poucos CD’s que tinha, não mais que quinze seguramente. Apreciava vinis, herdou a paixão do velho pai. Escolheu um vinil dentre seus preferidos, todos os de Mozart. Sempre preferiu Mozart a Ludwing. Dançou um pouco como um bailarino louco, por uns quatro minutos de música.

Largou o toco no cinzeiro da sala. Ele também tinha um cinzeiro em cada ambiente, tal quais os cigarros e os fósforos. Pegou uma toalha na gaveta das toalhas. Tinha cerca de quinze toalhas, todas azuis, nunca as repetia sem estarem limpas. Lavava-as normalmente na segunda à noite. Foi ao banheiro, despiu-se das cuecas e entrou no chuveiro. O banho morno, nem quente nem frio, não importava se era verão ou inverno. Era primavera. Banhou-se e saiu do chuveiro. Secou-se, acendeu outro cigarro. Logo vou ter que botar outro maço no banheiro, pensou. Foi nu até a sala, virou o disco. Na cozinha, abriu a geladeira e comeu mais um sanduíche, nu em frente à porta aberta. Nunca se resfriava.

Caminhou, saltando às vezes no ritmo dos violoncelos da música, até o quarto. A ressaca havia passado depois do banho, pelo menos parte dela, e ele aumentou a música no caminho. Escolheu a roupa cuidadosamente. Sandálias de couro, calça branca de algodão, camisa azul claro, da mesma cor das toalhas. Pensava se ia de chapéu ou não. O tempo estava nublado, acabou por colocar um colar budista que era de sua mãe. Na sala, guardou o vinil na caixa, depois desligou o aparelho. Girou a chave de casa as dez e cinqüenta e sete. No corredor deu bom dia a vizinha a qual ele não sabia o nome, mas sempre cumprimentava. De pé tão cedo Moacir? Ele respondeu com um sorriso simpático, e uma cara de quem diz: pois é, tu vê só. Desceu pelo elevador antigo

Pela calçada, andou despreocupado com o resto do mundo, sendo quase atropelado por um fusca vermelho ao atravessar à rua. Caminhou por cinco quadras até chegar a uma pequena feira de produtos agrícolas, onde comprou uma dúzia de ovos. Andou por mais duas quadras e então teve preguiça de caminhar o resto do caminho e pegou um táxi para percorrer os poucos quarteirões restantes. Pagou o táxi, três reais e cinqüenta, e desceu indo de encontro ao prédio de Cláudio.

Tocou o apartamento 202 e esperou. “Quem é?” perguntou uma voz nervosa ao interfone. “Sua mãe, agora abre essa droga, Cláudio”. Cláudio apertou o botão para abrir a porta e Moacir entrou no prédio. Subiu as escadas visto que não havia elevador no prédio. Terminou a subida ofegante, levando a mão ao peito com muita dificuldade para respirar. Acendeu um cigarro. Bateu a porta de Cláudio. Está aberta, ouviu-o gritar de dentro. Entrou e fechou a porta atrás de si, girando a chave exatamente as onze e trinta e dois. Caminhou para dentro da sala de estar e, ao sentir um cheiro estranho, falou:


-Cláudio, o que você andou cozinhando aqui? Esta merda de apartamento esta com um cheiro horrível.
-Como se você sentisse muitos cheiros com esse seu nariz de perdigueiro! Você fuma desde seus treze anos Moacir! – gritou Cláudio do banheiro.
-Sério cara, esse lugar está fedendo. Tem algum bicho morto por aqui?
-Tem.


Nesse exato momento Cláudio saiu do banheiro apontando uma Sig-Sauer P220 com silenciador para o meio da testa de Moacir. Um único tiro para que ele, que vinha de frente em direção ao banheiro, caísse de costas no assoalho, derrubando a sacola com ovos. Cláudio resmungou alguma coisa sobre os ovos e limpou a sujeira deles, colocando-os no lixo. Em seguida pôs o corpo de Moacir em um grande saco plástico e arrastou-o para o segundo quarto, o que não era o dele, onde havia mais sete sacos pretos semelhantes, dos quais saia um forte odor de decomposição. Ele limpou o sangue panos úmidos e seguiu para o seu quarto. Parou na frente da mesa de cabeceira e pegou um pequeno caderno azul e uma caneta. Pôs-se a escrever:

“Querido diário, o psicanalista tinha razão. Jamais poderia me suicidar sem pensar em como ficariam meus amigos e parentes próximos, o quanto eles sofreriam com tudo isso simplesmente por eu ter resolvido ‘escapar dos meus problemas’. Seria simplesmente muito egoísmo de minha parte ficar livre de todo esse mundo decadente e deixá-los aqui para apodrecer nesse lugar o resto de suas vidas. A cada um que passa fica mais fácil. A única que deu trabalho foi a minha mãe, ela realmente não queria morrer, coitada. Tenho certeza de que vai me agradecer mais tarde, quando eu a alcançar. Apenas mais alguns dias, alguns poucos amigos com os quais eu realmente me importo para tirar daqui e então seremos todos livres. Todos!”

Levantou calmo e deixou o diário em cima do travesseiro, na cama. Alongou as costas e deu um longo bocejo para relaxar os músculos. Foi até o telefone e discou um número.

“tuuu”

“tuuu”

“tuuu”

-Alô, Dorinha?


28 janeiro 2007 

Esfolados

Ele saiu de casa pela manhã para fazer seus exames. Revisão normal, a cada seis meses, só para ver se estava tudo funcionando direito. Geralmente não estava. Fez os exames de sangue e urina pela manhã e marcou uma tomografia para à tarde. Era dez e meia da manhã quando saiu do hospital. Ele sentia-se num ambiente familiar, provavelmente passava tempo demais no hospital, mais do qualquer pessoa dentre as que não trabalhavam lá. Bom, talvez não mais do que o pessoal da UTI, mas vários dos atendentes e médicos lembravam-se dele de algum caso.

Saiu de lá e foi passear num shoping próximo. Eles abrem as dez. Esta certo que ele normalmente não levantava antes das dez, ou das dez para o meio-dia, mas sempre pensou que os shopings deveriam ficar abertos com todas as lojas funcionando 24 horas. Ou pelo menos abrir as oito, como o comércio normal. Claro, a única vez que trabalhou num shoping ele pegou o turno da tarde, então realmente não se importava com as pessoas que teriam de acordar duas horas mais cedo para trabalhar. Se ele morasse em uma grande cidade turística, os shopings funcionariam 24 horas. Talvez ele se mudasse pra uma. Ou talvez não, cidades turísticas são muito agitadas mesmo.

Foi na livraria. Não, não tinha livraria, ele foi à Saraiva Mega Store. Não dava pra chamar de livraria, não tinha o ar de livraria. Eles tem sofás para sentar e ler qualquer livro da loja, e um café também, ciber-café, aqueles locais com Internet e café, além de ter um lugar cheio de CD’s, DVD’s e alguns ET’s procurando músicas barulhentas. Isso tudo era legal até certo ponto, mas chegava uma hora que enchia o saco, não tinha clima de livraria, não como um bom sebo. E tinha muita luz, muitos corredores pequenos, as prateleiras deviam ser maiores. Em resumo, uma merda.

Ele pegou um livro pra ler apesar de tudo. Um desses autores modernos com nomes engraçados. Não tinham nomes de escritores, eram nomes engraçados. Não iriam durar uma década, nem mesmo um deles. Um livro de sucesso e acabou, ou às vezes nem isso. Alguns duravam mais um pouco, e esses eram os “grandes escritores da literatura atual”. Uma grande merda, isso sim. Guris de merda que não sabiam o que escreviam, e outros merdas que compravam e não entendiam, então estava tudo bem. Ele leu alguma coisa durante uma hora ou um pouco mais. Então teve fome, saiu para comer.

Passeou pelo shoping até a praça de alimentação. Luzes e músicas diferentes em todas as lojas, era engraçado de ver, tudo tão exagerado. Olhou umas roupas numa loja. Um vendedor lhe perguntou se tinha trabalhado na filial de capão da canoa. Não, nunca trabalhei em nenhuma praia, ele respondeu, mas passei o verão em capão várias vezes. O vendedor falou alguma coisa sobre ter achado o rosto familiar. Ele nunca tinha entrado na loja, e nem sabia da existência de uma filial na dita cidade. Não disse nada para não ficar chato, apenas saiu. As roupas eram bonitas, mas estavam caras demais todas, ele não queria tanto assim uma roupa nova.

Andou por toda a praça de alimentação sem vontade de comer nada, apesar da fome. Hora do almoço, todos naquele agito de comer, todos os lugares lotados, cheios de pedidos, cobrando absurdos por arroz, bife e umas fritas. Era demais pra ele. Saiu do shoping pensando onde ia comer, até que viu um carro de cachorro quente. Pediu um cachorro e um refrigerante. Foi para o meio de um parque com eles.

Passou umas quadras esportivas, uma pista de ciclismo e finalmente chegou num gramado verde. Grama verde, árvores verdes, tanto espaço aberto sem ninguém. Era tão bom. Ele sentou embaixo de uma grande árvore. Minutos depois viu que não tinha muita sombra e percebeu que estava sentado embaixo da única árvore morta. Enquanto todas as outras estavam verdejantes no final da primavera, ela estava lá, seca.

Ficou imaginando porque não ia mais vezes naquele lugar, um lugar tão bonito. Definitivamente iria voltar lá, pra ler um livro ruim ou algo assim. Acabou seu almoço tão vagarosamente quanto um bicho preguiça e pôs-se a descansar um pouco deitado no gramado. Cochilou por alguns minutos, então abriu os olhos e viu os galhos retorcidos da árvore morta. Fazia anos desde a última vez que subira numa árvore. Resolveu tentar a sorte.

Levantou-se, alongou um pouco os músculos completamente atrofiados devido à idade e ao sedentarismo e foi em direção à árvore. Uma mão, depois a outra, pensou ele, não deve ser difícil. Não conseguiu na primeira, nem na segunda tentativa. Somente na terceira conseguiu subir para a parte da árvore onde o tronco se dividia em três galhos mais grossos, que ao longo de seu comprimento se dividiam em algumas dezenas. Orgulhoso de ter subido na árvore e se sentindo dez anos mais jovem, subiu mais um pouco num dos três galhos mais grossos. Parou onde ele achou um conveniente espaço para encostar as costas enquanto admirava a paisagem do resto do parque, exatamente quando começava a sentir certo medo da altura. Sentiu uma pequena dor nos braços e de repente viu-os esfolados, com um mínimo de sangue neles. Ainda estava vivo afinal, pensou ele.

Ficou ali por um tempo, sem fazer nada. Olhando as formigas, o quanto elas sobem e descem à árvore morta, e o musgo que se criara nas partes mais úmidas. Olhou para as árvores em volta e para as pequenas coisas ao redor delas. Então ele viu ao longe a rua que separava o parque da cidade. Tantos carros passando, tanto barulho vindo de lá, tanta fumaça. E o shoping mais ao longe, estragando completamente a vista do horizonte. Era tudo tão belo na natureza, porque diabos o homem tinha que estragar tudo? Resolveu não pensar nisso, e deixar a coisa toda de ser idealista e tentar mudar o mundo para os mais jovens. Ele próprio já tinha tido a sua dose, e o mundo não mudou em nada.

De repente, prestou mais atenção ao detalhe de uma árvore. Um coração, daqueles com dois nomes dentro, gravados a canivete ou faca. Algo que não se vê mais com tanta freqüência, pensou ele, normalmente, foi substituído por pichações em paredes e paradas de ônibus com o mesmo propósito. Ficou imaginando de quem eram aqueles nomes... De quando eram? O casal ainda freqüentava o parque? Ou fugiram para a Europa com a moça grávida, para tentar a sorte de algum jeito? Será que eram dois jovens que acreditavam na existência de um amor eterno? Ou dois velhos brigando em um apartamento, sem se suportar e morando junto apenas por condições econômicas? Eles poderiam ter sido o mais romântico dos casais de sua devida época, ou talvez o garoto apenas escrevera isso para impressionar a moça, comê-la e jogar fora. Eram tantas as possibilidades. Ficou curioso e decidiu ver o nome do casal depois, só por curiosidade.

Ainda continuou mais um tempo ocioso em cima da árvore morta, até se entediar por completo e resolver se dirigir para o hospital. Desceu da árvore e ainda machucou mais um pouco os esfolados. Riu por um momento ao pensar na idéia de alguém com a sua idade com braços esfolados de subir em árvores. Então seguiu em frente seu caminho para o hospital, caminhando por meio aos carros e edifícios.

No hospital, fez sua tomografia e aproveitou para marcar um raio-x para um pouco mais tarde, pois tinha tempo. Após ambos os exames completos, deu tchau para Odete, Marilda e Claudia, as três enfermeiras que mais gostavam dele, de todas as sete que ele sabia o nome. Despediu-se também do seu urologista, que estava no plantão, como todas as quartas-feiras. Só então saiu do ambiente familiar e confortável que lhe era o hospital, e foi para sua casa tirar aquele cochilo das nove e quarenta da noite que o fazia dormir melhor mais tarde. Só quando deitou é que percebeu: havia esquecido completamente de olhar quais eram os nomes dentro do coração na árvore do parque, perto da árvore morta. Volto lá amanhã, pensou, e dormiu babando no travesseiro como uma criança de sete anos.